A obsessão
em torno da musicalidade de formas visuais é um fenômeno
perene no contexto da invenção artística. Mais que
qualquer outra tendência expressiva de caráter assim geral
ela ajuda a entender o momento na pintura de Solange Magalhães.
O fascínio sui-generis da música é conseqüente da conjugação única de um máximo de liberdade expressiva – correntemente mal entendido como “abstração” – com um máximo de lastro psicológico, proporcionado principalmente pelo ritmo. A experiência do ritmo – som em conjunção com estimulação cromática – é a primeira que o ser humano vive; e, também, a mais freqüente. Há de começar ainda em fase intra-uterina e só desaparece com a morte. Sem intenção de paradoxo, e sem o perigo de contradição, pode-se mesmo afirmar que é o lastro excepcionalmente ponderável da música que confere a ela liberdade única em seus vôos de imaginação – tornando-a num protótipo que as outras formas de expressão procuram aproximar. Na pintura atual de Solange Magalhães, essa procura torna-se quase explícita. Solange compõe variações e fantasias de aparência abstrata mas de óbvia raiz biomórfica. E sua pintura musicalizou-se a tal ponto que muitas vezes parece exigir a temporalidade num sentido literal. Ao invés de um conjunto de imagens isoladas, Solange na verdade vem compondo uma seqüência orgânica de imagens quase à maneira do cinema. É possível e pertinente ver-se o total de sua produção nestes últimos dois anos como se vê um grande filme abstrato. E a boa crítica a respeito de um McLaren ou de um Eggeling pode ser usada para o maior esclarecimento daquela produção. A música visual de Solange Magalhães torna-se às vezes descritiva. Traduz com extrema sensibilidade, por exemplo, a atmosfera das cercanias de Ouro Preto e Olinda. Suas marinhas recentes adquirem um grau de verismo raramente atingido por nossos paisagistas modernos, o mesmo podendo afirmar-se de suas composições ondulantes e violáceas onde ressoam crepúsculos e montanhas de Minas. Para tanto, Solange não necessita de aceitação plena do figurativo. Basta-lhe a flexibilidade expressiva que desenvolveu ao longo de sua grande maturação com pintura informal, sob o provável efeito de sua vivência freqüente da música. Essa mesma flexibilidade permite outros efeitos notáveis, como o da evocação simultânea, em uma imagem coerente, de uma vista aérea e de elementos típicos da terra “sobrevoada” – curiosa ambivalência entre o mapa e o detalhe. Nas marinhas de Olinda, abertas sobre horizontes livres e convidativos, a visão ao longe – e para o longe – coexiste com a tradução próxima da experiência de elementos locais: areia, vegetação varrida pela brisa, água de rio e água de mar. Solange compõe ainda toda uma série de geologias eróticas – que às vezes serviriam de ilustrações para a poética analítica (ou a análise poética) de M. Bachelar. Nestas “geologias”, a visão penetrante em raio X toma o lugar do detalhe no binômio com o mapa; a polaridade passa a se estabelecer entre as entranhas e a superfície. Em outros casos, a imagem restitui eventos primevos de origem da vida sobre a terra – ou do fogo como espírito. Ao permitir-se grande liberdade para musicalizar na pintura o seu relacionamento com o ambiente e a interioridade, a artista jamais se afasta do real. Seu feito é, pois, especificamente artístico. Alair O. Gomes
– Rio, março 78 |