A memória
do caos
A trajetória de
Solange Magalhães pelas paisagens do Rio, de Minas Gerais e do
Nordeste na atual exposição da Petite Galerie onde se pode
ver também alguns trabalhos da fase mais antiga, em que as marcas
iniciais do enfoque adotado agora pela artista já estão
claramente impressas.
Para Solange Magalhães, a pintura é muito mais do que um
exercício técnico que veicula as realidades do mundo. A
paisagem, no seu caso, vista pelo olho, tem de passar por todas as retortas
da sensibilidade antes de transformar-se em quadro na parede. A expansão
e o achatamento da matéria que ocorrem em suas telas são
parte de um processo mental durante o qual misturam-se elementos de diversas
fontes para formar o pano de fundo psicológico, di visual. São,
assim, paisagens psicológicas; ou, como quer o crítico Alair
Gomes, musicais. Partindo de tal premissa, temos de saber agora se a operação
realizada pela artista tem sucesso como produto final.
Talvez seja necessário informar antes de tudo que a fase pictórica
atual de Solange Magalhães apresenta progressos consideráveis
como linguagem específica; é, de fato, um pulo para à
frente em relação aos outros trabalhos seus que tive a oportunidade
de ver em Salões e na sua individual na antiga Galeria Grupo B.
Partindo desse dado básico, posso dizer a seguir que o que mais
despertou meu interesse nestas paisagens de Solange Magalhães foi
a sua maneira circular de mostrar o mundo. È essa circularidade
de visão, que achata e expande a matéria, como que atomizando-a,
que singulariza cada uma das telas ora expostas, sejam as que representam
o Rio, a terra quente de Ouro Preto ou as marinhas de Olinda. São
quase que resquícios de paisagens, lembranças submersas
que brotam nas telas para testemunhar uma paisagem mental por dados lugares
que impressionaram a retina da artista. Na verdade, nem é muito
importante a colocação do rótulo, mas enfim, o selo
dos locais pintados está bem aparente.
O que vejo de importante no empreendimento de Solange Magalhães
é a maneira como ela traduz em pintura sua visão muito especial
das coisas. A palavra metafísica me ocorreu, mas prefiro não
usá-la. Antes, repito que é a partir da circularidade que
ela desencadeia todo o seu processo criador. E dentro desse circular-feminino
pode caber tudo, como numa usina de sonhos. É ele que mantém
o equilíbrio e a profundidade; dentro dele bóiam todos os
elementos, como que querendo escapar, fugir pelas bordas, crescer de maneira
descomunal, agredir, afundar, desaparecer. Os elementos da pintura de
Solange estão sempre querendo sair de foco, num eterno movimento
para o infinito e, ao mesmo tempo, para fora do quadro.
O trabalho da artista é conseguir algum equilíbrio para
os seus modelos; sente-se a luta árdua que ela trava constantemente
para manter em ordem uma natureza que se esvai em água, em terra,
em sol. A natureza de Solange Magalhães pode estar surgindo do
fundo do tempo ou se fundindo no nada. A opção fica com
o espectador que, de acordo com seu grau de sensibilidade, poderá
tornar-se muito inquieto diante do que parece um universo pronto para
entrar em convulsão. A pintora talvez não pretenda despertar
tal tipo de emoção com seu trabalho, mas é certamente
o que terá ocorrido com muita gente. Nos inquietamos ao constatar
que além da nossa realidade, ordenada e segura, há uma outra,
brotando com decisão das mãos de uma artista, e que a mesma
tem por particularidade uma nota mais alta que nos lembra o caos. Para
Solange vai ser incômodo ler esta reflexão. É, no
entanto, o maior elogio que posso fazer à sua mostra, porque constato
com isso que ela teve a coragem pouco comum de entrar por um caminho muito
especial ao levar para a tela uma ótica da natureza que perturba
e faz pensar.
Francisco Bittencourt
– Tribuna da Imprensa Novembro 1978
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