Entrevista
concedida a Fernando Cocchiarale
em maio de 1995
O conjunto de seu trabalho revela um imaginário singular, autônomo em relação aos principais movimentos artísticos que se desenrolaram nos últimos trinta anos. A formação cultural européia e seus estudos de Física, já no Brasil, são sinais de que essa autonomia não resultou apenas de uma necessidade irreprimível de autoconhecimento e de auto-expressão, mas também de uma escolha consciente e de uma concepção que você possui sobre o que é próprio da atividade de artista. Fale-nos disso. O artista recusa-se a
lidar somente com o mundo convencional que lhe é imposto através
de regras, da educação, etc. A sensibilidade é o
seu instrumento principal, o que lhe permite captar o “invisível”
tanto dentro dele – o imaginário – como fora –
o mundo formal – e criar uma visão pessoal, isto é,
recriar o mundo em cada uma de suas obras. Acho que ser artista não
é uma escolha consciente e racional. Lidar com o mundo de um ponto
de vista sensível é fatalmente entrar em conflito com o
estabelecido e, numa certa medida, viver à margem da sociedade
convencional. Exige um preço que nem todos podem pagar ou suportar.
No meu caso, acho que tanto uma formação cultural européia
como a minha viagem pelo mundo da Física foram influências
determinantes. Nasci no começo da Segunda Guerra Mundial –
também faz parte da formação cultural européia
– com a presença do ódio, da violência, da morte
e do eterno renascer do homem das próprias cinzas. A luta primordial
pela vida. O fato, também, de estar sempre em contato com uma cultura
milenar estimula a capacidade de olhar, de ouvir e de sentir. A minha
sorte foi ter vindo para o Brasil com treze anos de idade, antes de esse
grande repertório tornar-se uma canga, uma prisão de normas,
de padrões. Minha memória pessoal, por isso mesmo, não
se enraíza numa cultura ou local determinados. Sou por demais misturada
de raças e de exílios. Minhas raízes estão
em mim. Elas vêm do que há de mais arcaico em nós,
do início de tudo. Minha pintura mostra um mundo em constante metamorfose.
E a Física? Cada vez mais me convenço que somos inconscientemente
manipulados por nós mesmos. Aparentemente, na época, eu
quis estudar Física um pouco por eliminação. Estudar
nunca foi um problema para mim, pelo contrário. Até hoje
adoro aprender. Conservo o olhar maravilhado da criança que descobre
sempre algo novo. Na minha família, cursar uma universidade fazia
parte das coisas obrigatórias e inquestionáveis. Mas estudar
o que? Fui eliminando o que acreditava poder estudar sozinha e que eu
adorava, por exemplo, história, línguas, literatura, etc.
Sobraram as ciências. A Biologia tinha tantos nomes difíceis
que desanimei logo. A Matemática era só teoria, pura abstração.
A Física era a única saída: hoje em dia, me dou conta
da enorme pertinência da minha decisão, porque na realidade
estava procurando um despojamento, a elaboração de um mundo
a partir de uma observação direta – o que é
um físico, senão um observador? Por tudo isso é que você jamais estudou em alguma escola ou atelier? Provavelmente. Mas nunca me passou pela cabeça! Como já disse: teria sido recusada numa escola acadêmica. Um atelier poderia me ajudar a aprender técnica – mas sempre preferi aprender sozinha. Agora, essa minha procura – a mesma através da Física ou da pintura – do essencial, da essência da vida, de um ritmo universal, é um caminho que cada um tem que fazer por si mesmo. Não se aprende num atelier. Nesse sentido, como você entende a experiência artística, técnica e expressivamente falando? Só posso falar por mim, acho que todo artista terá uma resposta pessoal. Basicamente, começo um trabalho no escuro, isto é, sem saber o que surgirá na superfície branca à minha frente, como um registro caótico do inconsciente. Em seguida, eu olho até chegar a uma coerência, a algo que faz sentido: nunca sei exatamente aonde o quadro vai me levar, porque é comum me desinteressar pela coerência inicial, questionar o próprio quadro e até modificá-lo em sua essência num momento de coragem (quando acontece, fico totalmente exausta, aniquilada). Vivo um quadro até ele estar pronto, sem saber de antemão o seu aspecto definitivo. Já me aconteceu, é claro, querer reproduzir uma imagem concreta, mas era uma necessidade de afirmação. Precisava provar a mim mesma ser capaz de fazê-lo. Sempre me julguei muito pouco habilidosa. Quanto à técnica, acho que você a desenvolve conforme as exigências do seu trabalho, lendo, refletindo, e, sobretudo, na prática. Seu processo de trabalho alterna experiências em desenho e pintura sobre papel com pintura sobre tela ou Eucatex. Como se relacionam esses momentos? De 1962 até 1976, eu fazia séries sobre papel utilizando diversas técnicas. Depois eu separava alguns desses trabalhos e os passava para a tela. Até que um dia, em 1976, armei-me de uma coragem imensa, e enfrentei a tela cara a cara, sem o intermediário do papel. Isso significa que as obras sobre papel eram então estudos – experiências prévias – para as obras definitivas sobre tela ou Eucatex? Não. Não são estudos. Simplesmente, o papel permite o registro rápido e imediato de um momento, e o papel não perdoa, isto é, é muito difícil apagar tecnicamente a memória de um papel, o que é facílimo num quadro. Como minha pintura desenvolve-se a partir de registros do inconsciente, diante do papel não tenho para onde fugir. É um face a face. Por mais difícil que seja, depois de uma série de algumas dezenas de trabalhos, você adquire uma confiança maior no desafio de o espera para enfrentar uma tela. As primeiras obras feitas por você são gráficas ou planares, como na série das Personas, onde a cor é chapada, sem os meios tons e as transparências que progressivamente invadiram seu trabalho. Nesse sentido o caminho por você trilhado é inverso ao de parte significativa dos pintores modernos para os quais a simplificação da pintura, permitida pelas cores lisas e atonais, marcava uma diferença fundamental em relação à tradição clássica, perspectivada e tonalista. Considerando o caráter singular de seu processo de trabalho, qual o significado pictórico das transformações que nele ocorreram ao longo desses trinta anos? Devo confessar que nunca me preocupei em ser diferente ou não em relação à tradição clássica, bem como em ser solidária com os pintores modernos. A minha pintura não partiu de uma preocupação intelectual, mas procurou inconscientemente traduzir uma apreensão sensível do mundo numa linguagem pictórica. Se tivesse que analisar o processamento de meu trabalho, o faria da seguinte maneira: para mim, o fundo é constituído por elementos do inconsciente, um mundo proveniente ora do imaginário – uma cosmogonia pessoal – ora de uma observação que, apesar de direta, passou por retortas incontroláveis. A forma é a tradução plástica deste mundo. O fundo e a forma são indissociáveis. O fundo acompanhou a minha vivência. A forma e a linguagem nela utilizada desenvolveram-se a partir de uma exigência cada vez mais complexa, o métier enfim. No começo, eu não estava olhando para fora, nem acredito que poderia tê-lo feito. Precisava organizar e despojar um amálgama confuso de registros até então compilados na minha memória – inconsciente, insisto. Nessa ordem de idéias, o traço havia de ser a primeira manifestação, a forma mais imediata, mais direta e mais fácil. A cor ainda era desnecessária, seria até um obstáculo. Mas é lógico, a partir desse momento em que você registra uma série de signos numa superfície branca, o olho exige uma organização prazerosa, plástica enfim. A cor entra, a meu ver, neste processo. Os vermelhos e os azuis foram as primeiras, os amarelos as últimas (conquista difícil!). Diria que até 1976, não olhava para fora. Havia em mim uma necessidade prioritária de registrar um folclore pessoal, de exorcizar demônios ou fantasmas, etc. Os personagens foram aos poucos se abstraindo até chegarem a anotações puramente musicais: despojamento, ritmo e vida. A forma enriqueceu-se de novos elementos visuais: cores, grafismos diversos. Em 1976, surgem as transparências: até então a cor era chapada. Comecei a olhar para fora, a lidar com a luz, a permitir que ela atravessasse a matéria, que se tornasse fonte de vida. Daí o aparecimento lento e progressivo da paisagem, numa fusão entre dentro e fora. Em 1978, assumi a paisagem por ela tornar-se consciente (já estava presente sem me aperceber). Acho que a paisagem é o espaço conquistado. De 1978 até agora, a forma evoluiu bastante, é natural: a exigência à qual me referi anteriormente. Suas paisagens, sobretudo as mais recentes, são simultaneamente reais e oníricas. Você já mencionou que buscava a elaboração de um mundo através da observação direta. Qual o papel da observação em suas paisagens? Você as faz partindo de um modelo natural ou de registros internos difíceis de determinar? Como se dá a interação entre natureza visível e a reverberação imaginária em seus trabalhos? Acho que a paisagem deve
essencialmente ser vista do interior e não do exterior. Nós
e o mundo temos a mesma origem. Passamos por todos os diferentes registros
da matéria, faz parte da nossa memória. Quando digo pintar
do interior, entendo com isso que todas as paisagens já estão
dentro de nós. Pintá-las, a partir daí, equivale
a pintá-las a partir delas próprias. Podemos num momento
determinado tornarmo-nos até aquelas paisagens: claro, isso não
impede que nos inspiremos, às vezes, em uma paisagem qualquer.
Penso que é somente quando a paisagem se torna nós mesmos,
quando a interiorizamos, que ela se integra com o todo cósmico. |