Autofagia e antropofagia
de Solange Magalhães
Pode parecer falso refinamento
querer pegar o quadro e dissecá-lo, ou bancar o entendido, mas
foi assim que comecei a ver os quadros de Solange Magalhães, ou
talvez seja a sua pintura a nos arranjar a pose compenetrada com que nos
postamos diante deles como autoridade governamental ante uma amostra de
rocha lunar.
No primeiro instante o quadro parece revelar-se por inteiro. Não
tem nada obscuro, nenhuma dúvida, nada para ser completado nem
para se ver depois: um esquema conhecido, um trabalho bem executado. Um
quadro qualquer da exposição, visto isoladamente, bem poderia
parecer não se referir a nada, uma repetição escolar
de um tipo de pintura que já passou de tela para parede, de parede
para tecidos, para papel de embrulho, que já passou de mão
em mão no mundo todo e que somente poderia ser aceita como ingenuidade
ou exotismo, alusão a uma época morta, uma impostação,
ou até uma impostura.
E se faço questão de citar isso é porque faz parte
do jogo o exterior fácil, que não nos anima a procurar mais,
que nos convida a permanecer na beleza visual das cores, cores que têm
apenas uma função auxiliar de ocupar vazios e mais especificamente
de avisar as linhas e dar maior nitidez às áreas nelas contidas.
Porque o grafismo, a luta que se adivinha por baixo das placas de cor,
é que implanta e define o quadro, o envolvimento das formas, a
continuidade das formas, a continuidade das linhas que separam e unem,
que atraem e repelem num duplo desenho interno e externo de figuras que
são uma e várias, que são um todo e ao mesmo tempo
uma parte, que resvalam, contorcem-se, entredevoram-se e renascem, côncavo-convexas,
envolventes –
envolvidas, cujo volume a cor plana não consegue esconder, nem
o tratamento esteticizante chega a anular ou manter na frigidez estática
de recortes inanimados. Nota-se um parentesco com Tarsila do Amaral, a
Escola de Paris vertida para brasileiro, sendo que no caso não
há uma preocupação de abrasileiramento, mas de transposição
para o próprio folclore da pintora, embora se encontre um mesmo
gosto pelas formas moles, a que não falta uma forte dose de animismo
e bestialidade no sentido estrito de ambas as palavras: Animismo, atribuir
a todos os seres da natureza uma ou várias almas; Bestialidade,
prática de altos libidinosos com os animais. Sendo que essa libidinosidade
se estende também a todos os seres da natureza, uma osmose de que
cada quadro procura ser a apoteose, o canto geral, em que toda a superfície
da tela procura fundir-se.
Toda a tela, não. É verdade que há sempre em todos
os quadros uma idéia de terra, de onde as figuras partem ou surgem,
e não onde assentam ou se apóiam, e uma idéia de
céu, de espaço vazio por trás das figuras, de pano
de fundo, mas que a pintora vem tentando eliminar, seja por meio de cores,
ora na figura ora no que seria o fundo, ou por meio de grafismo em cima
das cores.
O fato de as figuras partirem da barra horizontal inferior do quadro,
como se fosse do chão, me pareceu a princípio um meio descoberto
e utilizado sistematicamente para “barrar” o espectador, para
conservá-lo à distancia e também para dar monumentalidade
ao quadro, como se as figuras fossem vistas de baixo e de longe. Mas sinto
que a pintora transfere para nós uma parte de nós mesmos
que continua dentro do quadro. Olhamos as figuras com um corte na base
como se dali para cá o nosso corpo continuasse, ou melhor dito,
como se estivéssemos mergulhados na nossa própria anatomia,
como se, por exemplo, olhássemos para nossas pernas ou para o nosso
estômago. E o plano de fundo dá mais idéia de campânula
que se fecha sobre nós, como a vista a partir de dentro de um ovo
ou útero, do que a de campo aberto e distante, a plena luz.
Essa sua viagem está apenas iniciada, embora bem adentrada, e já
de uma etapa a outra, ou seja, de uma sala a outra, de acordo com a arrumação
das telas nesta exposição do Museu de Arte de Olinda, muita
bagagem já foi deixada de lado ou consumida. Mas o “ethos”
e o “pathos” continuam os mesmos, agora lançados apenas
com maior brio, mais sinteticamente e ao mesmo tempo mais aprofundados,
especializados numa temática mais restrita, e que ao mesmo tempo
é uma abertura para novos horizontes.
José
Cláudio – Diário de Pernambuco – 1971
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