Do caos ao cosmos:
Solange busca na paisagem a luz-vida
Num depoimento de
março de 1978, inserido no catálogo de sua exposição
na Galeria Global, de São Paulo, Solange Magalhães escreveu:
“Em relação à minha pintura, constato com
o recuo fundamental do tempo que durante 13 anos, até 1975, atravessei
um ciclo de gestação, passando inicialmente pelo caos,
donde surgiram seres metamórficos, numa fusão incessante
de todos os elementos de vida, explodindo a seguir para se reduzirem
à sua mais simples expressão, como as letras de um alfabeto.
O ciclo atual é para mim, um nascimento. Começou com uma
procura de luz, uma recusa das regiões sombrias ou duvidosas,
como se tudo que escondemos a nós mesmos fosse ligado às
trevas e a luz à essência da vida”. O depoimento
se encerra com a afirmação de Solange de que “a
paisagem está surgindo naturalmente...” em sua pintura. Buscar a luz Solange chegou à paisagem porque viu na luz a essência da vida, e para ela “pintar é um ato de vida”. Bachelard diz que toda forma tem que estar fundamentada numa causa sentimental, numa causa do coração, pois só assim estará carregada de luz. Essa luz que Solange busca na paisagem é assim o caminho que vai do caos ao cosmos, porque, apresar da diversidade do cenário, é como se Solange buscasse em todas estas paisagens, distribuídas por geografia tão distante e diversa, uma paisagem primeira, fundadora de todas as demais. Há uma “vontade de forma” que se impõe em todas estas paisagens, que as unifica apesar da peculiaridade de cada uma delas, e que por sua vez, tem origem numa “vontade de ver”. Ver antes da visão, buscar a essência e a origem de todas estas paisagens, que é sentimento, digamos, metafísico, quase religioso. O ângulo de visão varia todo o tempo – às vezes temos a sensação de que estamos dentro da paisagem ou entre seus elementos. Ou estamos perto, frente à frente, como na paisagem isolada do Amazonas, com aquele muro verde quase impedindo a visão do céu. Outras vezes a paisagem é vista de longe, ou melhor, busca-se o longe, nos horizontes rasteiros, com farturas do céu, o que não impede a captação das minudências da paisagem, em primeiro plano. É a “ambivalência entre o mapa e o detalhe”, mencionada por Alair Gomes. E com raras exceções, os canaviais do Nordeste e a improvisada estrada de terra, a paisagem é quase sempre bruta, primitiva, como que intocada pelo homem: silêncio e arcaísmo. E ao caráter crispado de algumas vegetações rasteiras temos, em oposição, seja a monumentabilidade silenciosa dessa inquietante visão de uma ilha do Pacífico Norte, seja o sensualismo da paisagem carioca. O enigma da pedra Mas falta o homem nessas paisagens. Por quê? Falta o homem, mas não a presença humana – que é o próprio olhar comovido da artista. Antes de chegar às paisagens, Solange Magalhães tinha uma pintura de caráter biomórfico, metafórico, germinal. Suas formas sugeriram algo que estava se formando, se fazendo, buscando uma ordem. Gênese, portanto. AS figuras, quando apareciam, eram como que fantasmas, figuras embrionárias, vagando por espaços de definição imprecisa. Seres que vinham de regiões obscuras – do caos. Mas pouco a pouco tudo foi adquirindo contornos precisos, formas precisas, se fazendo paisagem palpável, concreta. Contudo, permanece esta espécie de fantasmática – especialmente na série de pinturas sobre papel. Cores e estruturas diáfanas. E em quase todas essas paisagens mentais aparecem pedras, que parecem saídas da entranha da terra para se constituírem em altares primitivos. Na verdade, essas pedras são figuras que desapareceram de sua pintura. São como que formas arquetipais, primitivas, ou quase-seres de enigmática significação. Essas pedras são esfinges a serem decifradas. Depois de olharmos bem essas pinturas sobre papel percebemos que elas são a premonição das demais paisagens, a imagem princeps das demais, a atividade onírica que antecedeu a contemplação do real natural. Como diz ainda Bachelard, citando L. Tieck o “sonho humano é o preâmbulo da beleza natural”. Frederico Morais – O Globo novembro 1980 |