Do caos ao cosmos:
Solange busca na paisagem a luz-vida

Num depoimento de março de 1978, inserido no catálogo de sua exposição na Galeria Global, de São Paulo, Solange Magalhães escreveu: “Em relação à minha pintura, constato com o recuo fundamental do tempo que durante 13 anos, até 1975, atravessei um ciclo de gestação, passando inicialmente pelo caos, donde surgiram seres metamórficos, numa fusão incessante de todos os elementos de vida, explodindo a seguir para se reduzirem à sua mais simples expressão, como as letras de um alfabeto. O ciclo atual é para mim, um nascimento. Começou com uma procura de luz, uma recusa das regiões sombrias ou duvidosas, como se tudo que escondemos a nós mesmos fosse ligado às trevas e a luz à essência da vida”. O depoimento se encerra com a afirmação de Solange de que “a paisagem está surgindo naturalmente...” em sua pintura.
Li este depoimento da artista depois de ver, numa tarde de terça-feira, sua exposição na Petite Galerie, que se encerra hoje. Estão expostas várias séries de quadros a óleo sobre Eucatex “mostrando” paisagens do Canadá, França, Nordeste brasileiro, Amazonas e Rio de janeiro e uma outra série de pinturas sobre papel, realizadas com técnica de aquarela, de paisagens inventadas. Fiquei muito tocado por essa última série e, especialmente, pelas paisagens canadenses. Troquei rápidas palavras com a artista, que me informou sobre seu processo de criação: “Eu viajo muito e geralmente fotografo as paisagens que me impressionam mais. Em casa, de volta da viagem, projeto os slides para impregnar-me sãs imagens, especialmente do colorido. Depois, no ateliê, realizo livremente meus quadros, sem qualquer ajuda da fotografia”.
Fui dormir esta noite de terça-feira com as imagens dos quadros de Solange na cabeça, sobretudo aquela paisagem de Ilha do Pacífico Norte, no Canadá com suas águas quase negras, circundadas por rochedos. Era como se percorresse, num barco, aquele espaço de um silêncio absoluto. Outra imagem que me perseguia era a que mostrava uma pedra colocada no centro do papel como uma espécie de altar. Portanto, água e pedra.
Na quarta-feira pela manhã, um movimento irresistível me levou a buscar na estante dois livros de quadrilogia de Bachelard sobre os elementos naturais. No que se chama “L’eau et les rêves”, que é seu “ensaio sobre a imaginação da matéria”, encontro logo à primeira página esta distinção: “As forças imaginativas de nosso espírito se desenvolvem sobre dois eixos muito diferentes. Umas encontram seu tesouro diante da novidade, se deliciam com o pitoresco, a variedade, o acontecimento imprevisto. A imagem que elas animam tem sempre uma primavera a descrever. As outras forças imaginantes escavam o fundo do ser, desejam encontrar no ser, ao mesmo tempo, o primitivo e o eterno. Na natureza, em nós e fora de nós, elas produzem os germes, os germes onde a forma é enterrada numa substância, onde a forma é interna”. Bachelard distingue duas imaginações, a formal e a material, observando que “é preciso que uma causa sentimental, que uma causa do coração se torne uma causa formal para que a obra tenha a variedade do verbo, a vida modificante da luz”. Quando se começa a ler Bachelard é difícil largá-lo e assim, lá pelas folhas tantas, encontro mais esta observação supimpa: “Sonhamos antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente toda paisagem é uma experiência onírica”.
Em outro livro, “La terre et les rêveries de la volonté », Bachelard, citando Novalis, para quem os rochedos são as imagens fundamentais, também os define como a “forma subjetiva primeira”, como a imagem primeira.

Buscar a luz

Solange chegou à paisagem porque viu na luz a essência da vida, e para ela “pintar é um ato de vida”. Bachelard diz que toda forma tem que estar fundamentada numa causa sentimental, numa causa do coração, pois só assim estará carregada de luz. Essa luz que Solange busca na paisagem é assim o caminho que vai do caos ao cosmos, porque, apresar da diversidade do cenário, é como se Solange buscasse em todas estas paisagens, distribuídas por geografia tão distante e diversa, uma paisagem primeira, fundadora de todas as demais. Há uma “vontade de forma” que se impõe em todas estas paisagens, que as unifica apesar da peculiaridade de cada uma delas, e que por sua vez, tem origem numa “vontade de ver”. Ver antes da visão, buscar a essência e a origem de todas estas paisagens, que é sentimento, digamos, metafísico, quase religioso. O ângulo de visão varia todo o tempo – às vezes temos a sensação de que estamos dentro da paisagem ou entre seus elementos. Ou estamos perto, frente à frente, como na paisagem isolada do Amazonas, com aquele muro verde quase impedindo a visão do céu. Outras vezes a paisagem é vista de longe, ou melhor, busca-se o longe, nos horizontes rasteiros, com farturas do céu, o que não impede a captação das minudências da paisagem, em primeiro plano. É a “ambivalência entre o mapa e o detalhe”, mencionada por Alair Gomes. E com raras exceções, os canaviais do Nordeste e a improvisada estrada de terra, a paisagem é quase sempre bruta, primitiva, como que intocada pelo homem: silêncio e arcaísmo. E ao caráter crispado de algumas vegetações rasteiras temos, em oposição, seja a monumentabilidade silenciosa dessa inquietante visão de uma ilha do Pacífico Norte, seja o sensualismo da paisagem carioca.

O enigma da pedra

Mas falta o homem nessas paisagens. Por quê? Falta o homem, mas não a presença humana – que é o próprio olhar comovido da artista. Antes de chegar às paisagens, Solange Magalhães tinha uma pintura de caráter biomórfico, metafórico, germinal. Suas formas sugeriram algo que estava se formando, se fazendo, buscando uma ordem. Gênese, portanto. AS figuras, quando apareciam, eram como que fantasmas, figuras embrionárias, vagando por espaços de definição imprecisa. Seres que vinham de regiões obscuras – do caos. Mas pouco a pouco tudo foi adquirindo contornos precisos, formas precisas, se fazendo paisagem palpável, concreta. Contudo, permanece esta espécie de fantasmática – especialmente na série de pinturas sobre papel. Cores e estruturas diáfanas. E em quase todas essas paisagens mentais aparecem pedras, que parecem saídas da entranha da terra para se constituírem em altares primitivos. Na verdade, essas pedras são figuras que desapareceram de sua pintura. São como que formas arquetipais, primitivas, ou quase-seres de enigmática significação. Essas pedras são esfinges a serem decifradas. Depois de olharmos bem essas pinturas sobre papel percebemos que elas são a premonição das demais paisagens, a imagem princeps das demais, a atividade onírica que antecedeu a contemplação do real natural. Como diz ainda Bachelard, citando L. Tieck o “sonho humano é o preâmbulo da beleza natural”.

Frederico Morais – O Globo novembro 1980