Solange Magalhães: Metalinguagem


Vão-se alguns anos desde que, fazendo uma visita de rotina a uma galeria carioca, deparei a pintura de Solange Magalhães. Anotei num semanário em que escrevia na época a profunda impressão que o trabalho me havia causado. Tratava-se então de uma pintura de absoluto rigor formal, revelando uma artista profundamente conhecedora do métier. Uma característica que saltava aos olhos era o evitamento de tudo aquilo que, em composição, em cromatismo, em todas as soluções, enfim, descambasse para o fácil.
Vim a conhecer a artista muito tempo depois e cheguei a ver alguns trabalhos que ela preparava para uma outra exposição. Tendo estado longe do Rio durante dois anos, somente em começos de setembro revi sua pintura: os quadros que ela preparava para a exposição atual no Recife. Esse afastamento me impediu de ver que tipos de desdobramentos vieram a dar na fase atual, onde ela se apresenta com uma paisagem de legibilidade mais aberta, sem perder a intrigante carga de mistério que é como uma marca de sua obra. O não conhecimento (senão por alguns poucos quadros) desse elo perdido que liga suas duas fases talvez me tenha impedido de perceber a atual como conseqüência da anterior, num exercício de coerência e não de ruptura, como me pareceu à primeira vista.
Uma leitura mais atenta do esplêndido conjunto que a pintora expõe na Artespaço revelará os misteriosos caminhos que sua obra percorreu da paisagem fechada, subjetiva, abstrata, à figuração luminosa, carregada de signos e deliberadamente envolvente que ela nos apresenta agora. E o mais gratificante para todos nós que amamos sua pintura é que o trabalho de Solange Magalhães, ao passar de um sistema de significação para outro não praticou concessões: todo o rigor que apresentava nos anos setenta aí está, agora a serviço de uma fábula talvez mais amena ou interessada em amenizar o dificilmente penetrável de seu vocabulário anterior.
A que título se passa esta mutação? Excluamos desde já a hipótese que a artista esteja buscando fazer-se entender pelos filisteus do colecionismo ou baixar seu discurso ao nível de uma crítica de arte no mais das vezes improvisada e desavisada como a nossa (falo do Brasil, de maneira geral, onde, como tudo, há exceções). Arrisquemos, como hipótese de trabalho, que o próprio universo mental da pintora reelaborasse – por que não? – seus significados, passando a lançar mão de significantes mais afins com os novos valores do seu discurso. A hipótese ganha corpo quando observamos que, embora ela, ciosa de sua linha de coerência, insista na tese de que o trabalho atual é tão somente um desdobramento do anterior, neste aparecem coisas verdadeiramente antagônicas àquele.
A primeira delas seria o ritmo da paisagem, que recebe um tratamento perto do action paiting, com algo de vertiginoso, de profundamente tenso e vibrátil. E o curioso é que a atmosfera do paisagismo gratificante, com dominantes em tonalidades suntuosas, ao invés de atenuar o choque dessa pintura, ressalta seus elementos de indagação e proposta. Há toda uma dialética entre a delicadeza dessas veladuras e raspagens e, do outro lado, a severa face do mistério que esses quadros propõem. Na paisagem mental de antes o olhar era, de saída, reduzido a um clima sem possíveis equívocos: a leitura poderia ser mais penetrante ou menos; uma questão apenas de intensidade. A mim ela me fascinou ao primeiro olhar e o resto foi aproximação e identificação. Agora a contemplação apresenta-se mais matizada: guardando o que de sólido e auto-exigente essa pintura já tinha, nesta fase a temos refratária a qualquer rótulo, já não unidirecionalmente linguagem, estuário de linguagens, aonde vão dar a action painting, a antipaisagem, o texturismo e outras formulações de que a artista passa a lançar mão com desenvoltura e competência.
No que agora nos oferece Solange põe, como nas fases anteriores, seu universo num código elegante e depurado. Decodificá-lo , porém não é mais, na fase atual, uma tarefa para a crítica. O referencial enriqueceu-se de sugestões múltiplas e não raro conflitantes. Somente uma abordagem sensitiva poderá franquear as portas desse mundo metafórico, uno em seu fragmentário, coerente na pluralidade de suas soluções plásticas. Picturalmente ordenado não tanto para inscrever no mundo de significações do espectador o discurso do artista, mas antes significando uma pulsão deste último na direção do primeiro, um convite a atingirem juntos o Mistério, a Significação.
Os signos e acentos da tela são todo um código cuja equivalência meramente plástica já seria em si um motivo muito forte para nos determos diante desse trabalho. Mas, gratificantes quanto sejam, é preciso não perder de vista que não estamos diante de paisagens apenas, nem apenas de uma pintura acabada no requinte e sensibilidade. Nem de uma pintura tão somente para os olhos: a procura e a inquietação que marcaram anteriormente a obra de Solange permaneceram; e se eram mais perceptíveis sob o tratamento austero de antes, não são menos poderosas agora sob as aparências encantatórias dessa paisagem elaborada. Há que captar-lhe uma dialética entre forma e conteúdo, pois tudo se passa nesse Wonderland carolliano como se a artista tivesse pudor da gravidade de sua procura, preferindo vesti-la ontem com a austera metáfora de uma pintura hermética; hoje com as enganosas aparências de um paisagismo envolvente.

Ruy Sampaio – Diário de Pernambuco novembro 1981